"O
amor não mais é do que o conjunto de caminhos labirinticos que conduzem
ao vício dos vícios, ao mais sublime privilégio duma vida: a mulher"
Passas
incauta no teu passo apressado pelas ruas longínquas dominadas pelo
escuro da noite recém caída. Caminhas envolta numa fina névoa
misteriosa, onde o fino nevoeiro do dia esquecido meio solarengo
trazia-te os incensos já quase ressequidos das desventuras das almas
humanas que, iluminadas pela parca luz diurna, desfiavam os nós
intermináveis da sua vida boémia. Passeias escondida atrás da tua
insignificância para o resto da sociedade mundana, onde tu apenas
apareces como mais uma gota de água no meio deste oceano interminável de
mentiras, devaneios, loucuras insanas ou momentos esclarecidos de uma
lucidez desaparecida atrás do olhar mais fugidio. Caminhas envolta pela
tua roupa normal, ordinária na sua parecença de classe média escondida
por detrás da tua inenarrável tentativa de parecença com uma qualquer
flor que tenta esconder a sua beleza interior, mas o que apenas consegue
é adensar o mistério por detrás dessa cortina que te cobre
invisivelmente.
O
mistério que te rodeia é o mistério que rodeia todas semelhantes a ti.
Escondes dentro de ti a preciosidade da tua originalidade, qual diamante
único que tenta encontrar guarida na gruta mais profunda onde apenas
consegue ver meros lampejos de uma luz perdida no horizonte, a luz que
te vai corromper nas agruras de uma comunidade envolta na mentira e na
luxúria. Anseias chegar ao teu ninho que te salva das impurezas que te
rodeiam, ao teu porto de abrigo onde te podes sentir solitária e,
finalmente, envolta nos teus próprios pensamentos que não podem ser
quebrados de forma fácil, pois fazê-lo equivale a destruir o castelo de
cartas onde assenta a tua alma e o teu espírito. A tua beleza salta à
vista de qualquer espelho, de qualquer olhar preso a uma esquina ou a um
banco de jardim, distraido na sua leitura ocasional diária, tentando
esquecer os problemas que lhe causam amargura de espírito e acidez de
sofrimento, folheando de forma lânguida as páginas que encerram dentro
de si linhas que escapam à sua mente no mesmo momento em que as observa
pela primeira vez. Mas quando passas, incauta no teu passo sonoro e
arrepiante na sua tranquilidade amorfa, esse olhar de leitor sobe pelo
ar e detém-se por momentos em ti. E apenas consegue ver algo parecido
com uma deusa perdida pelas histórias longínquas da mitologia da
Antiguidade mais esquecida pela memória humana.
Dentro
do teu pequeno espaço, encerras uma redoma de segredos, de pesadelos,
de sonhos, de utopias, de platonismos que apenas tu consegues perceber.
Tentas escondê-lo, mas a tua beleza não mais é do que o sinal de que as
musas existem, que as deusas existem, que todos os caminhos são apenas
dificuldades momentâneas para alcançares o mito que apenas parece ser
alcançável aos espíritos mais intrépidos. Não, tentas recusar a
inevitabilidade do destino, mas ele aparece sempre, atrás de ti, com um
sorriso lancinante ajudando-te a compôr o teu cabelo e a tua figura,
para mais uma saída onde a tua beleza irá sobressair. Tu não mais és do
que a representação máxima do sonho imaginário que apenas se julga
possível no estado mais exarcebado do platonismo ideológico daquilo a
que se pode chamar de "romantismo", mas que não mais é do que uma droga
permanente que te destrói os sentidos e te deixa num estado de profunda
sonolência. Até que um dia percebeste a mais atroz das verdades, aquela
que, subrepticiamente, descobriste naquele dia solarengo, depois de um
olhar...